sexta-feira, 20 de julho de 2012

LITERALMENTE UMA MERDA RELEVANTE

Alguns de vós certamente se lembram da "Noite da Má Lingua", programa semanal da SIC há uns anos valentes, quando se podia dizer que Júlia Pinheiro era até porreirinha. Hoje, não a suporto. Este era um programa onde um painel fazia comentário político e não só, num clima mais divertido, mas também acutilante.

Houveram algumas alterações com o passar dos anos neste painel, mas o mais memorável era composto por Rui Zink, o idiota do Manuel Serrão, a actriz que parecia (e ainda parece) snifar coca com a frequência com que uma pessoa normal respira, Rita Blanco, e ainda, o melhor na minha opinião, Miguel Esteves Cardoso, o homem da língua de sapo (vejam clips e vão perceber).

Miguel Esteves Cardoso era um jornalista de longa data, escritor, crítico, além de muitos artigos de opinião extremamente mordazes e sarcasticamente hilariantes. Entre outros, ele já foi director de redacção, fundador do "Independente", etc.
Nos anos 80 o que trouxe o nome de Miguel Esteves Cardoso à ribalta e consequentemente fez com que ele fosse convidado a participar no painel da "Noite da Má Lingua", foram as suas crónicas quinzenais no "Expresso", de nome "A Causa das Coisas".
De duas em duas semanas, Cardoso escolhia um tema e no "Causa das Coisas" reflectia sobre esse tema ou palavra-chave de um modo irónico, sarcástico muitas vezes, cáustico e, na minha opinião, brilhante.

Em 1987, ele lançou o livro "A Causa das Coisas", na qual ele reuniu alguns dos melhores artigos desta rúbrica. Eu li esse livro quando eu tinha perto de 17 anos, ou seja, muito depois de ter sido lançado, mas na altura lembro-me de achar muitos dos artigos extremamente relevantes ainda.
Recentemente, li de novo este livro já com os meus 30 anitos e fiquei chocado de como ainda é relevante!! Estamos a falar de artigos escritos nos anos 80, não se esqueçam. Fiquei mesmo impressionado de como ainda é pertinente.
Como exemplo, daí o título deste post, partilho convosco na totalidade o artigo de nome "Merda".
Digam-me lá se isso ainda pode ser aplicado hoje em dia ou não:

"MERDA

   Aquilo que está cada vez pior, isto segundo a mais divulgada opinião pública, é "esta merda". De facto, não se entabula actualmente em Portugal conversa nenhuma que não se contenha obrigatoriamente a proposição "Esta merda está cada vez pior".
   Que merda, afinal vem a ser esta? É, pelos vistos, uma merda que está cada vez pior. Deve ser, por conseguinte, o agravamento de uma merda que já esteve melhor. Um endurecimento da situação, em suma. É que, embora não possa haver, logicamente, merdas que estejam sempre melhores, pode concluir-se ser sempre melhor a merda que se tem hoje (mesmo que esteja cada vez pior),  do que a merda que vai haver amanhã, a qual irá ser, segundo este raciocínio de merda, ainda pior.
   A pergunta frequente - "Como é que vai essa merda" - não é, no contexto sociolinguístico português, uma pergunta no verdadeiro sentido do termo. Trata-se simplesmente de uma espécie cerimonial da senha, passada exclusivamente com o fito de obter do outro a resposta apetecida do "está cada vez pior".
   As pessoas sofrem, é certo, com esta merda. Faz por isso sentido perguntar a um amigo, "Então - estás melhor do Portugal?", tal qual se tratasse de um fígado agonizante ou de uma coronária em vias de dar o bafo.
   E tal como as doenças mais esquisitas, Portugal é uma condição que só no estrangeiro se trata, necessitando invariavelmente de longas estadas, longe da Pátria-Mãe ou, como proverbialmente se metaforiza a dura separação, longe desta merda toda.
   Antigamente, se bem se lembram, esta merda não ia estando, como agora, cada vez pior. O mais frequente era aquela merda estar rigorosamente "cada vez mais na mesma". Qual era o cidadão de pendor ordinário que nesses tempos não gostava de declarar que "as moscas mudam mas a merda é a mesma"?
   Bons tempos, afinal, esses em que a merda não piorava, limitando-se a ficar na mesma! Hoje já nenhum cidadão se atreve a repetir essa frase vetusta, acerca daquela merda, em que só as moscas mudavam. Porque esta merda, em contrapartida, já não é para ele a mesma. As moscas há muito deixaram de realizar esses exercícios periódicos de render da guarda. E pensa tristemente: "Esta merda agora está tão má que até as moscas se foram embora!". Imagina-as, decerto, a cochichar entre si, em desesperados acordes de mosca "Ó pá, esta merda está impossível!". Fugiram, adivinha ele, quem sabe se à procura de outras merdas...
   Uma merda, para os Portugueses, o que é? É tudo. Basta dizer em recinto público "É tudo uma merda" para ver abanar com compungida concordância todas as cabeças presentes. Se se falar noutra coisa qualquer, não há duas opiniões semelhantes. Contudo, instala-se a unanimidade em torno desta ideia-matriz, segundo a qual, é infalível, é tudo uma merda.
   A merda que é esta merda goza de uma potencialidade psicológica infinita de ser vista a tornar-se numa merda cada vez pior. Se algum patriota ousasse protestar irresponsavelmente: "Portugal não é essa merda!", logo levaria com uma resposta em nacional uníssono: "Então, mas que merda é que é?". Essa, bem vistas as coisas, é que é a merda.
   Só em Portugal é que as coisas, para além de serem e estarem uma merda, podem também dar merda. "Dar merda" é o processo através do qual as coisas que ainda não são uma merda vêm a garantir a sua eventual transformação em merda. "Não faças isso, que dá merda" é uma advertência comum. Dizer "Não vale a pena fazer seja o que for, porque dá sempre merda"é uma merda que diz muito acerca da forma que têm os Portugueses de estar no mundo. Esta resume-se, simplesmente, a estar na merda ou a ir fazendo umas merdas para não estar tanto.
   Esta paixão dos Portugueses alcança picos que nenhum outro povo vislumbra sequer. Quem, senão um português, consegue, por exemplo, estar deliciado a ouvir uma sonata predilecta de Beethoven e dizer, sinceramente embevecido, "Ó pá - eu adoro esta merda!"?
   Valha-nos, ao menos, ainda haver quem adore esta merda. Os estrangeiros, por exemplo. Quantos portugueses discordam da noção básica de que os "estrangeiros se pelam por esta merda"? Nenhum.
   Daí tira alguma satisfação, admita-se. Por muito pior que esta merda esteja, ele sabe que só uma ínfima fracção da população mundial (cerca de dez milhões) não se pela por ela.
   E se, por acaso, algum estrangeiro calha não se pelar, é garantido que qualquer português digno do nome o mandará, infalivelmente, à merda...  "

De novo, escrito nos anos 80.
Caso para dizer, uma merda literalmente relevante ainda.

2 comentários: