Ora, relendo o livro do mesmo nome que reúne várias destas crónicas de 80s e tais, encontro outro artigo ainda mais relevante para muita, mas mesmo muita gente que conheço. Intitula-se "Neura". Realmente, há coisas que não mudam com o tempo.
Aqui têm na totalidade o artigo. Se vos tocar pessoalmente, então tentem pensar sobre o que aqui é dito e mudar um pouco a vossa maneira de ser.
"NEURA"
"Aos Portugueses não basta o tédio, a melancolia, o fastio ou o spleen. Para nós, tudo isso é coisa pouca e passa com um copo ou oito. Em Portugal, inventámos uma via portuguesa para a depressão que se compõe de todas as mágoas internacionais (tédio + melancolia + fastio + spleen) acrescentadas das nossas especialidades caseiras, nomeadamente a saudade e o sebastianismo. A este "coquetelho" implosivo chamamos a Neura.
A Neura da nossa terra nada tem a ver com neuroses, neurastenias e outros nomes de consultório que os médicos balbuciam enquanto receitam psicotrópicos de Câncer ou de Capricórnio, sempre conforme o signo do doente. A Neura não tem cura. E a Neura não tem cura porque não é grave. É, a um mesmo tempo, pesada e leviana.
Parece que uma manada de elefantes, desejosos de entrar para o Guiness, está empenhadíssima a tentar ver quantos paquidermes nos cabem na cabeça. Mas basta o fresco pio de uma andorinha para espantá-los todos dali para fora. Na Neura pode acabar a Primavera só por se constipar uma andorinha. Mas recomeça só por ela deixar de fungar. Mesmo que, para isso, tenha pegado uma pneumonia a todos os pássaros de Portugal.
A Neura não tem cura porque os Portugueses, quando a têm, não a querem curar. Querem é alimentá-la. Quando estamos com a Neura, é como se estivéssemos com uma grande amiga nossa. - "O quê? Não me digas que não conheces a Neura?" Caso a Felicidade bata à porta, não a deixámos entrar e, com a porta semicerrada, sussurramos-lhe "Desculpa lá, ó Felicidade, mas agora não dá - é que estou com a Neura..." E a Felicidade fica na escada.
Se se dá o contrário - se reina a Felicidade em casa e de repente aparece a Neura - é a Felicidade que vai imediatamente para a rua. A Neura é com quem os Portugueses estão bem. Se um europeu está triste, vai ao gira-discos e põe um disco alegre (sobretudo os Espanhóis, que curam facilmente as depressões com meia hora a bater palminhas). Os Portugueses dirigem-se imediatamente ao Leonard Cohen ou à Amália Rodrigues, escolhem a canção mais deliciosamente depressiva e anicham-se na fossa como toupeiras em argila quente. Os estrangeiros não compreendem porque é que as casas de fado estão cheias de sorumbáticos e macambúzios, a borrar o xadrez das toalhas com o ácido das lágrimas - pensam que são as canções que os entristecem e apetece-lhes pedir à fadista que escolha umas cantigas mais animadoras. Seria o motim! A revolução! Ou, pior ainda, a alegria! Os estrangeiros saem para se alegrarem, quando estão um pouco em baixo. Os Portugueses não, e se saem quando estão um pouco em baixo, é para ver se descem mais um pouco. A Neura é uma aventura e, para um português que está em baixo, só Júlio Verne e a Viagem ao Centro da Terra.
Se os estrangeiros têm vergonha de dizer que estão tristes e disfarçam, falando do clima ou dos jardins, os Portugueses vangloriam-se publicamente. Pergunta-se, por educação, a um estranho qualquer se "passou bem" e ele levanta as sobrancelhas até baterem no risco-ao-meio, enche o peito ufano e diz "Já que me pergunta, tenho passado muito mal, sabe?" Se se dá o caso raro de estar extremamente feliz - um estado socialmente inaceitável - disfarça dizendo que está "menos mal". Destina-se esta expressão a informar que já esteve péssimo; que agora, sabe-se lá porquê, está somente muito mal, mas que dentro em breve regressará à Neura, ou seja, à normalidade.
Os Portugueses desconfiam profundamente das pessoas alegres. Para os de Esquerda, a Alegria é um pouco fascista, toda "lá vamos cantando e rindo". Para a Direita, a Alegria é igualmente comunista e barbuda, feita de vinho tinto e sardinha assada, muito Avante e festa do povo, o que é sempre preocupante. Experimente-se dizer a alguém que se é "feliz" e vejam-se as reacções atónitas. Ser feliz em Portugal é a maior perversidade cultural que se pode imaginar.
Uma amiga minha dizia-me há pouco que se irritava com a nova moda em Portugal em matéria de cumprimentos. Depois da fase malcriada do comentário exterior ("Está mais gordo", "Não está com boa cara"), ultrapassaram-se todos os limites da decência social e já se invade impertinentemente a esfera mais íntima e interior da pessoa com perguntas tipo "Então, bem-disposto?" Que se pode responder a uma pergunta destas, excepto "O que é que o senhor tem a ver com isso?"
Na verdade, o "Então, bem-disposto?" dos Portugueses é dito entre nós à maneira de dois hereges que são torturados lado a lado numa masmorra da Inquisição. É absolutamente irónico. Dada a maneira como os Portugueses põem e dispõem das coisas, como é que as coisas podiam estar se não mal dispostas? Já que não nos sabemos organizar sentimentalmente, preferimos o caos conhecido da Neura ao delírio, desconhecido da boa disposição. A Neura é para ser proposta, descomposta e, sobretudo exposta. O jogo é "Se me mostrares a tua Neura, eu mostro-te a minha". E assim vai sendo exposta, às postas, para durar mais.
Quando não se está com a Neura, o melhor é uma pessoa enfiar-se em casa, fechar as persianas todas e não falar com ninguém. O interessante é que, para um Português, quando se está com ela também se deve fazer o mesmo. Mas o porquê de se fazer o mesmo quando não se está com ela? Em primeiro lugar, porque é considerado anti-social e pedante não se estar com ela. Em segundo lugar, porque a Neura é altamente contagiosa. Quando uma pessoa está com a Neura, está garantida a epidemia pública. E não se transmite apenas às pessoas, mas também às coisas e aos sítios. A Neura é inefável e galopante. Os bares são uma Neura e, para um português de gema, até a queda de Constantinopla seria uma Neura.
A Neura tem dois compostos únicos - a saudade e o sebastianismo. A saudade não é da felicidade da infância, nem o sebastianismo se dirige à esperança de uma grande alegria no futuro. A saudade é só da Neura que se tinha quando se era pequenino - a Neura miudinha e inconsequente do beicinho e da birra. "Ai, que saudades do tempo em que tinha muitas Neuras diferentes num só dia...". diz o indivíduo típico, ao reparar que as Neuras são mais longas e mais entediantes quando se atinge a idade adulta.
O sebastianismo da Neura está na esperança messiânica que a Neura da velhice se atenue com a proximidade da morte. Só o prazer de ter a certeza absoluta que uma Neura não vai passar é o suficiente para ir mantendo as esperanças. Esperança, em português, é esperar. Não é agir para ajudar as coisas desejadas a acontecer. É ser simplesmente espectador. E quem nos faz companhia enquanto ficamos especados à espera "que chegue"? É a Neura.
Porque é que os Portugueses gostam tanto de estar com a Neura? Se saísse uma antologia chamada A Neura na Poesia Portuguesa, teria pelo menos dez volumes e seria o êxito de vendas do ano. Um português que lê António Nobre não se impressiona tanto com a qualidade literária dos poemas como com a sensação gratificante do parentesco: "Olha... o António Nobre era como eu... também estava sempre com a Neura!" Aliás, a Neura de António Nobre, como a Neura contemporânea, é sobretudo exuberante, cheia de pontos de exclamação: "Estou com a Neura! Iupii! Estou mesmo desesperado! Viva! Eia! Eia! Nunca estive tão deprimido em toda a minha vida!"
No fundo, a Neura é a maneira que os Portugueses têm de proteger-se das grandes depressões. A Neura nunca leva à tragédia nem ao suicídio. Aguenta-se bem e é uma morrinha que conta com a vantagem de ser comunicativa. As grandes depressões são solitárias. A Neura é um arraial. Os grandes males têm o inconveniente de requerer grandes remédios, sempre difíceis de obter. A Neura, como tantas coisas em Portugal, é um mal menor e remedeia-se a si mesma. Se estivermos com a Neura, não há perigo de resvalar para as macroangústias, porque a Neura abafa tudo e concentra todas as suas energias. Os povos mais alegres têm taxas de suicídio mais altas, porque não suportam que a vida não tenha um mínimo de felicidade. É a Neura. A boa, velha Neura portuguesa. É uma Neura, mas aí está."
Dedico este post a todas as pessoas a quem servir o barrete. E conheço muitas, mas mesmo muitas....
Vejam isto como uma coisa constructiva.
Adorei! :)
ResponderEliminarO MEC sabe escrever como poucos e diz as verdades por entre chalaças... ;)
Eu tenho neuras e neuroses. O remédio: para a primeira é fechar-me em casa e deprimir-me ainda mais (como boa portuguesa, tão bem descrita no artigo acima) e para a segunda são mesmo os químicos (que os psicotrópicos são substâncias ilegais...). O importante é olhar para as duas (neura e neurose) com bom humor. Se não as posso vencer, rio-me delas (não, não me junto a elas). LOL
Por acaso acho que o post enquadra-se contigo só em alguns aspectos, mas não muitos. Não és das piores. ;-) Aliás, a tua atitude em relação a este post só demonstra de como estás na onda certa de lidar com a Neura. E não, juntar nunca. Lol.
EliminarEstou no bom caminho. Tem sido uma longa caminhada, mas devagarinho chego lá. :)
EliminarQual quê, já estás lá que é diferente.
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