terça-feira, 7 de agosto de 2012

"NEURAS" ACTUAIS

Já no outro dia referi de como é impressionante que as crónicas de Miguel Esteves Cardoso na rubrica "A Causa das Coisas", escritas em meados dos anos 80, ainda eram extremamente relevantes nos dias de hoje. Além do humor ainda presente nelas.

Ora, relendo o livro do mesmo nome que reúne várias destas crónicas de 80s e tais, encontro outro artigo ainda mais relevante para muita, mas mesmo muita gente que conheço. Intitula-se "Neura". Realmente, há coisas que não mudam com o tempo.
Aqui têm na totalidade o artigo. Se vos tocar pessoalmente, então tentem pensar sobre o que aqui é dito e mudar um pouco a vossa maneira de ser.



"NEURA"

   "Aos Portugueses não basta o tédio, a melancolia, o fastio ou o spleen. Para nós, tudo isso é coisa pouca e passa com um copo ou oito. Em Portugal, inventámos uma via portuguesa para a depressão que se compõe de todas as mágoas internacionais (tédio + melancolia + fastio + spleen) acrescentadas das nossas especialidades caseiras, nomeadamente a saudade e o sebastianismo. A este "coquetelho" implosivo chamamos a Neura.
   A Neura da nossa terra nada tem a ver com neuroses, neurastenias e outros nomes de consultório que os médicos balbuciam enquanto receitam psicotrópicos de Câncer ou de Capricórnio, sempre conforme o signo do doente. A Neura não tem cura. E a Neura não tem cura porque não é grave. É, a um mesmo tempo, pesada e leviana.
   Parece que uma manada de elefantes, desejosos de entrar para o Guiness, está empenhadíssima a tentar ver quantos paquidermes nos cabem na cabeça. Mas basta o fresco pio de uma andorinha para espantá-los todos dali para fora. Na Neura pode acabar a Primavera só por se constipar uma andorinha. Mas recomeça só por ela deixar de fungar. Mesmo que, para isso, tenha pegado uma pneumonia a todos os pássaros de Portugal.
   A Neura não tem cura porque os Portugueses, quando a têm, não a querem curar. Querem é alimentá-la. Quando estamos com a Neura, é como se estivéssemos com uma grande amiga nossa. - "O quê? Não me digas que não conheces a Neura?"  Caso a Felicidade bata à porta, não a deixámos entrar e, com a porta semicerrada, sussurramos-lhe "Desculpa lá, ó Felicidade, mas agora não dá - é que estou com a Neura..."  E a Felicidade fica na escada.
   Se se dá o contrário - se reina a Felicidade em casa e de repente aparece a Neura - é a Felicidade que vai imediatamente para a rua. A Neura é com quem os Portugueses estão bem. Se um europeu está triste, vai ao gira-discos e põe um disco alegre (sobretudo os Espanhóis, que curam facilmente as depressões com meia hora a bater palminhas). Os Portugueses dirigem-se imediatamente ao Leonard Cohen ou à Amália Rodrigues, escolhem a canção mais deliciosamente depressiva e anicham-se na fossa como toupeiras em argila quente. Os estrangeiros não compreendem porque é que as casas de fado estão cheias de sorumbáticos e macambúzios, a borrar o xadrez das toalhas com o ácido das lágrimas - pensam que são as canções que os entristecem e apetece-lhes pedir à fadista que escolha umas cantigas mais animadoras. Seria o motim! A revolução! Ou, pior ainda, a alegria! Os estrangeiros saem para se alegrarem, quando estão um pouco em baixo. Os Portugueses não, e se saem quando estão um pouco em baixo, é para ver se descem mais um pouco. A Neura é uma aventura e, para um português que está em baixo, só Júlio Verne e a Viagem ao Centro da Terra.
   Se os estrangeiros têm vergonha de dizer que estão tristes e disfarçam, falando do clima ou dos jardins, os Portugueses vangloriam-se publicamente. Pergunta-se, por educação, a um estranho qualquer se "passou bem" e ele levanta as sobrancelhas até baterem no risco-ao-meio, enche o peito ufano e diz "Já que me pergunta, tenho passado muito mal, sabe?"  Se se dá o caso raro de estar extremamente feliz - um estado socialmente inaceitável - disfarça dizendo que está "menos mal". Destina-se esta expressão a informar que já esteve péssimo; que agora, sabe-se lá porquê, está somente muito mal, mas que dentro em breve regressará à Neura, ou seja, à normalidade.
   Os Portugueses desconfiam profundamente das pessoas alegres. Para os de Esquerda, a Alegria é um pouco fascista, toda "lá vamos cantando e rindo". Para a Direita, a Alegria é igualmente comunista e barbuda, feita de vinho tinto e sardinha assada, muito Avante e festa do povo, o que é sempre preocupante. Experimente-se dizer a alguém que se é "feliz" e vejam-se as reacções atónitas. Ser feliz em Portugal é a maior perversidade cultural que se pode imaginar.
   Uma amiga minha dizia-me há pouco que se irritava com a nova moda em Portugal em matéria de cumprimentos. Depois da fase malcriada do comentário exterior ("Está mais gordo", "Não está com boa cara"), ultrapassaram-se todos os limites da decência social e já se invade impertinentemente a esfera mais íntima e interior da pessoa com perguntas tipo "Então, bem-disposto?"  Que se pode responder a uma pergunta destas, excepto "O que é que o senhor tem a ver com isso?"
   Na verdade, o "Então, bem-disposto?" dos Portugueses é dito entre nós à maneira de dois hereges que são torturados lado a lado numa masmorra da Inquisição. É absolutamente irónico. Dada a maneira como os Portugueses põem e dispõem das coisas, como é que as coisas podiam estar se não mal dispostas? Já que não nos sabemos organizar sentimentalmente, preferimos o caos conhecido da Neura ao delírio, desconhecido da boa disposição. A Neura é para ser proposta, descomposta e, sobretudo exposta. O jogo é "Se me mostrares a tua Neura, eu mostro-te a minha". E assim vai sendo exposta, às postas, para durar mais.
   Quando não se está com a Neura, o melhor é uma pessoa enfiar-se em casa, fechar as persianas todas e não falar com ninguém. O interessante é que, para um Português, quando se está com ela também se deve fazer o mesmo. Mas o porquê de se fazer o mesmo quando não se está com ela? Em primeiro lugar, porque é considerado anti-social e pedante não se estar com ela. Em segundo lugar, porque a Neura é altamente contagiosa. Quando uma pessoa está com a Neura, está garantida a epidemia pública. E não se transmite apenas às pessoas, mas também às coisas e aos sítios. A Neura é inefável e galopante. Os bares são uma Neura e, para um português de gema, até a queda de Constantinopla seria uma Neura.
   A Neura tem dois compostos únicos - a saudade e o sebastianismo. A saudade não é da felicidade da infância, nem o sebastianismo se dirige à esperança de uma grande alegria no futuro. A saudade é só da Neura que se tinha quando se era pequenino - a Neura miudinha e inconsequente do beicinho e da birra. "Ai, que saudades do tempo em que tinha muitas Neuras diferentes num só dia...". diz o indivíduo típico, ao reparar que as Neuras são mais longas e mais entediantes quando se atinge a idade adulta.
   O sebastianismo da Neura está na esperança messiânica que a Neura da velhice se atenue com a proximidade da morte. Só o prazer de ter a certeza absoluta que uma Neura não vai passar é o suficiente para ir mantendo as esperanças. Esperança, em português, é esperar. Não é agir para ajudar as coisas desejadas a acontecer. É ser simplesmente espectador. E quem nos faz companhia enquanto ficamos especados à espera "que chegue"? É a Neura.
   Porque é que os Portugueses gostam tanto de estar com a Neura? Se saísse uma antologia chamada A Neura na Poesia Portuguesa, teria pelo menos dez volumes e seria o êxito de vendas do ano. Um português que lê António Nobre não se impressiona tanto com a qualidade literária dos poemas como com a sensação gratificante do parentesco: "Olha... o António Nobre era como eu... também estava sempre com a Neura!"  Aliás, a Neura de António Nobre, como a Neura contemporânea, é sobretudo exuberante, cheia de pontos de exclamação: "Estou com a Neura! Iupii! Estou mesmo desesperado! Viva! Eia! Eia! Nunca estive tão deprimido em toda a minha vida!"
   No fundo, a Neura é a maneira que os Portugueses têm de proteger-se das grandes depressões. A Neura nunca leva à tragédia nem ao suicídio. Aguenta-se bem e é uma morrinha que conta com a vantagem de ser comunicativa. As grandes depressões são solitárias. A Neura é um arraial. Os grandes males têm o inconveniente de requerer grandes remédios, sempre difíceis de obter. A Neura, como tantas coisas em Portugal, é um mal menor e remedeia-se a si mesma. Se estivermos com a Neura, não há perigo de resvalar para as macroangústias, porque a Neura abafa tudo e concentra todas as suas energias. Os povos mais alegres têm taxas de suicídio mais altas, porque não suportam que a vida não tenha um mínimo de felicidade. É a Neura. A boa, velha Neura portuguesa. É uma Neura, mas aí está."


Dedico este post a todas as pessoas a quem servir o barrete. E conheço muitas, mas mesmo muitas....
Vejam isto como uma coisa constructiva.




4 comentários:

  1. Adorei! :)
    O MEC sabe escrever como poucos e diz as verdades por entre chalaças... ;)
    Eu tenho neuras e neuroses. O remédio: para a primeira é fechar-me em casa e deprimir-me ainda mais (como boa portuguesa, tão bem descrita no artigo acima) e para a segunda são mesmo os químicos (que os psicotrópicos são substâncias ilegais...). O importante é olhar para as duas (neura e neurose) com bom humor. Se não as posso vencer, rio-me delas (não, não me junto a elas). LOL

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    1. Por acaso acho que o post enquadra-se contigo só em alguns aspectos, mas não muitos. Não és das piores. ;-) Aliás, a tua atitude em relação a este post só demonstra de como estás na onda certa de lidar com a Neura. E não, juntar nunca. Lol.

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    2. Estou no bom caminho. Tem sido uma longa caminhada, mas devagarinho chego lá. :)

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    3. Qual quê, já estás lá que é diferente.

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